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Vieiras Curadas e Palmito de Pupunha
Com Azeite Biológico e Gengibre

Este conto leva cerca de 8 minutos para ser lido.
O mesmo tempo que o prato leva para chegar à sua mesa.

Guga era gago.



Gu-gu-ga-ga-go.



Ah, a vida. Esta tresloucada periguete traquinas de humor insólito. Sempre à espreita nos pregando peças. Às vezes, somos o alvo da piada. Outras, apenas a plateia sonolenta que leva um chacoalhão de ânimo ao se surpreender com um trecho interessante numa convenção de vendas. O fato é que ela tem talento, essa vida. Ninguém sabe verdadeiramente quem ela é. Eu gosto de imaginá-la como um professor de gramática com Mal de Parkinson sofrendo de transtorno bipolar.  Escrevendo certo com linhas tortas. E dona de um estado de espírito imprevisível.  



Pois foi essa habilidade da vida que tocou o singelo e pueril Guga. A habilidade de tecer um plano maior para reles coadjuvantes de reprise de novela mexicana que somos, insignificantes mortais, repetidamente interpretando com canastrice singular um roteiro melodramático que sempre acaba em casamento – ou loucura, caros colegas solteiros que já se animavam, achando que teriam um destino melhor. Afinal, quem acaba sozinho em novela é o vilão. E o vilão sempre termina num hospício.



Dentro da piada havia uma bênção, Guga. Dentro da bênção havia uma piada.



Se todos nós fôssemos estudantes ranhetas sentados ordeiramente numa sala de aula fazendo uma prova de interpretação de texto dada pela vida, já estaríamos nos matriculando no supletivo, porque jamais passaríamos de ano. Decifrar o que ela diz é impossível. Você, sabichão, senhor me-levam-a-sério-porque-faço-citações-despretensiosas-de-Godard-e-eu-sei-de-uma-exposição-de-curtas-ótima-fora-desse-circuitinho-shopping-hollywood-ai-isso-é-tão-doismilenove-me-vê-um-frappuccino, provavelmente não enxergaria inteligência em tamanha anedota. Inteligência são aqueles roteiros previsíveis cheios de desgraça e tragédia cotidiana que ganham o Oscar esfregando a “verdade” na cara das pessoas, fazendo-as “pensar”, diria você. “E como ousa chamá-los de previsíveis?” Sempre acabam em desgraça e tragédia. Viu? Previsíveis. Pois bem, a vida adora um pastelão. E quem está com chantilly na cara somos nós.



Essa foi mais uma das suas piadas que guardava uma lição sublime. Até desconfio de tempos em tempos que o que a vida passa a vida inteira tentando nos dizer é para darmos uma boa risada de tudo. Só isso. Ela só quer que a gente se sinta bem, a vida. E para que serviria uma piada se não para nos fazer sorrir? Alguém pode não entender, não achar a mínima graça ou até mesmo se ofender, de fato. Mas quem sabe, ao se encontrar com a vida no fim da sua vida, o ofendido não se surpreenda com um “aí, mano. Foi mal. Desculpa aí.” Quando chegar a minha vez eu te conto. Só ouvi dizer que os que não aceitam o pedido de desculpas voltam como atendentes de telemarketing. 



O Guga, a princípio, não entendeu a piada. Mas quem somos nós para julgar, não é mesmo? Como foi dito, entender os roteiros da vida não é tarefa fácil – há quem ache mais simples ganhar a vida honestamente, acredite. Que piada. Guga, o gago. Um gago cujo nome já é, por si só, um trava-língua. Sou fã dessa vida.



Entendendo ou não, a vida tinha grandes planos para o Guga. Sua suposta desgraça revelou ser sua maior graça. A gagueira era, enfim, o DVD salvador numa tarde de domingo cheia de programas de auditório. Seu passaporte para a posteridade. O minuto de fama versão cidadezinha do interior onde os minutos levam uma eternidade. A glorificação de um incauto. A justiça falha que não tarda. O bolero do Ray Conniff no baile da saudade. O suéter nos ombros do analista contábil.  O leite condensado da Piña Colada. O olhar quarenta e três do galã de quermesse. O relaxa-a-bisteca-truta-que-você-tá-com-o-cara. A gagueira o transformou em Guga, o gênio. Guga, o mito. Guga, a lenda. Ainda gago, mas para sempre lembrado. Guga entrou para a história, graças à gagueira.



Houve um tempo em que Guga lutou contra sua condição. Como uma cigarra pagodeira que tentou largar o pandeiro e se juntar às formigas cdfs, um palhaço de circo que insistia em recitar Hamlet ou um vendedor de carros usados que falava a verdade, ele fez de tudo para acabar com a gagueira. Tinha a mania de fazer gargarejos com gengibre. Seu dia começava com uma sinfonia gargarejante do mesmo jeito que o de um advogado começava com “bom dia – entenda-se por ‘bom’ quaisquer adjetivos que qualifiquem uma experiência agradável, aprazível, reconfortante e satisfatória, dentro dos limites esperados e aceitos como críveis pela maioria constituinte da raça humana, vivente no planeta Terra sob toda série de revezes, contratempos, flagelos, desventuras, infortúnios e calamidades por ora desconhecidos e incalculáveis. Esta breve interjeição mundana que substitui ou acompanha o aceno físico não contém nenhuma dose de ironia, sarcasmo, chacota ou subtexto de teor malévolo e ofensivo. Qualquer fato que contradiga o desejado dia positivo é mera coincidência e de total responsabilidade da pessoa que o vive.” Muito cansativo. O gengibre, claro. Enquanto todo mundo já estava escovando o último molar, o Guga ainda estava lá, coitado. Gargarejando.



Tentou o canto. Ouviu falar de um rei inglês que triunfou sobre o problema desta forma. Mas como era amante do rap, sua cantoria só acentuou a falha – apesar de lhe ter rendido enorme popularidade entre os apreciadores do estilo, tornando-se o primeiro e único MC a fazer scratch ao vivo.



Fez terapia de regressão. Descobriu que tinha sido uma ovelha na vida passada. O que não resolveu gagueira nenhuma, mas acabou de vez com a necessidade de vestir uma malha de lã no inverno.



Foi a uma palestra de autoajuda, mas pelo carrão que o palestrante dirigia, só conseguiu ajudar o próprio.



Tentou o esoterismo. Tudo o que ganhou foi um vale-desconto numa loja de incenso. E algumas namoradas que não depilavam as axilas.



Nesses momentos de insucesso, sempre se lembrava das saudosas irmãs Vieiras. Que ele carinhosamente apelidara de “as Vieiras curadas.” Eram duas irmãs gagas que ele havia conhecido ainda garoto, no brotar da vida – ela de novo –, quando mal repetia as primeiras sílabas. Ah, que belas moças faceiras elas se tornaram quando o sopro da puberdade refrescou-lhes as têmporas. Guga até namorou uma delas. O relacionamento não deu certo. Apesar de parecerem feitos um para o outro, a implacável foice da discórdia acariciou suas jovens nucas. Sempre que iam dizer a palavra mágica, a super bonder de pessoas, a senha de acesso à perpetuação da espécie, a frase que consagra toda e qualquer união afetiva, tudo o que se ouvia era um angustiante “E-eu...Eu...Eu...E...” Como isso mais se parece com a manjada hesitação nervosa e cheia de culpa que precede o famoso pé na bunda, ocasionalmente um deles resolveu terminar antes que fosse alvo do indigno chute. Que trágico. Separaram-se sem saber que se amavam de verdade. Mas o amor desconfiado e turbulento deu lugar a uma frutífera amizade. Mantiveram contato por algum tempo, na época em que sinais de vida ainda eram dados com um carimbo. Foi assim que ficou sabendo, com esperançosa surpresa, que sua paixão juvenil havia se curado definitivamente da gagueira. A solução? Lobotomia. Sua ex-amada Vieira estava lobotomizada e feliz. Ia muito bem, obrigada. Trabalhava numa multinacional e sempre se destacava nas reuniões, falando horas a fio – para um observador mais atento, é verdade que não dizia coisa com coisa, mas era admiravelmente eloquente. Hipnótica até. Inclusive, parece que ia ser promovida no final do ano. Se uma notícia dessas já não fosse animadora o suficiente, imagine ficar sabendo logo em seguida que a outra irmã Vieira também havia se livrado do tique. No caso dela, tinha sido uma solução mais ortodoxa. Fonoaudiologia. Não, ela não tinha um especialista para indicar ao Guga. Quando estava ligando para marcar sua consulta, de tanto se esforçar para dizer a maldita palavra fo-no-au-di-o-lo-gi-a, acabou se curando. Foi um milagre. Ou uma variação da técnica do in-cons-ti-tu-ci-o-na-li-ssi-ma-men-te, preferem os mais céticos. Enfim, nunca é demais repetir que a vida destila mistérios além da nossa arcaica compreensão.



Lobotomia era radical demais para o Guga. E um milagre, por mais que viesse a calhar, nunca veio a acontecer. Assim pensa ele. Pois muitos milagres acontecem sem que notemos e a eles demos a devida alcunha. Foi um desses milagrezinhos discretos, não na importância, mas na importância que dão aos holofotes, aos quais são avessos, low-profile que são, que a vida fez acometer a vida de Guga. Estava ele, por razões das mais diversas – as quais não cabem descrever aqui –, trabalhando num restaurante de muito prestígio numa das maiores cidades do mundo. Eis que num dia aparentemente qualquer, por ironia ou destreza do destino, ele estava acompanhado de um funcionário novo, ainda se aclimatando no local. Este funcionário, naturalmente livre da obrigação de saber de cor e salteado a elaboração meticulosa e artesanal de cada prato da casa, perguntou ao Guga:



– O chef punha azeite biológico?



– Pu-punha.

Desde então, a pupunha passou a fazer parte do lendário prato, não mais lendário que o próprio Guga, respeitado grão-mestre dos ingredientes – como passou a atender seus muitos fãs –, que a vida consagrou no declamado momento histórico e tratou de lançar a novas glórias. Glórias estas que a vida cansou de contar. Agora tire esse cotovelo de cima da mesa e vá comer que está na hora.

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